TEOLOGIA EM FOCO: SINCERIDADE E ARREPENDIMENTO DIANTE DE DEUS

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

SINCERIDADE E ARREPENDIMENTO DIANTE DE DEUS



Lucas 18.9-14 “E disse também esta parábola a uns que confiavam em si mesmos, crendo que eram justos, e desprezavam os outros: 10 Dois homens subiram ao templo, a orar; um, fariseu, e o outro, publica no. 11 O fariseu, estando em pé, orava consigo desta maneira: Ó Deus, graças te dou, porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros; nem ainda como este publicano. 12 Jejuo duas vezes na semana e dou os dízimos de tudo quanto possuo. 13 O publicano, porém, estando em pé, de longe, nem ainda queria levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador! 14 Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, e não aquele; porque qualquer que a si mesmo se exalta será humilhado, e qualquer que a si mesmo se humilha será exaltado.”

INTRODUÇÃO. Talvez a parábola do fariseu e do publicano seja uma das mais conhecidas. Ela mostra que a dependência humilde diante de Deus, em vez de justiça própria, é a base para a resposta de oração. Muitas pessoas acreditam que Deus deve responder suas orações com base naquilo que elas fazem para Ele. Contudo, na contramão da meritocracia religiosa, e dentro da gloriosa graça de Deus, que faz cair chuva sobre justos e injustos (Mt 5.45), a lição de hoje nos ensina que o que Deus quer é que nossas orações sejam permeadas de sinceridade e arrependimento. Quando oramos a Deus, devemos confiar em quem Ele é, e não em quem nós somos. Jesus ensina que são felizes os humildes de espírito (Mt 5.3), aqueles que reconhecem a sua real condição diante de Deus. Por isso, hoje vamos falar sobre a sinceridade e o arrependimento para com o Senhor.

Se a primeira parábola tratava da perseverança na fé (vv. 1, 8), esta parábola agora fala da verdadeira postura que se espera de um homem de fé: reconhecimento de que tudo o que temos ou somos é por misericórdia divina, não por nossos próprios méritos! Assim, embora utilize-se de uma parábola que fala de oração, Jesus pretende fazer-nos refletir sobre nossa postura diante dos homens e para com Deus em todos os aspectos de nossa vida!

I. INTERPRETAÇÃO DA PARÁBOLA DO FARISEU E DO PUBLICANO
1. O propósito da parábola.
O evangelista Lucas nos diz o motivo de Jesus ter contado esta parábola:

“A alguns que confiavam em sua própria justiça e desprezavam os outros, Jesus contou esta parábola” (v. 9, NVI)

Lembremo-nos que Jesus costumava andar cercado de multidões, e nem todos ali eram verdadeiramente convertidos. Além disso, era comum que perto de Jesus estivessem sempre falsos religiosos, como alguns fariseus, escribas e intérpretes da lei (embora entre eles também existissem crentes verdadeiros). Ao público específico de religiosos arrogantes é que Jesus dirige esta parábola, com a clara intenção de confrontá-los e, ao mesmo tempo, ensinar-lhes sobre a verdadeira postura religiosa que agrada a Deus.

2. O contraste entre “o melhor” e “o pior”.
O contraste estabelecido por Jesus entre os dois personagens é bem proposital. A intenção é contrastar o pior com o melhor dos homens, a fim de revelar que aos olhos de Deus o pior pode ser o melhor, enquanto que o melhor pode ser o pior! “O Senhor não vê como vê o homem, pois o homem vê o que está diante dos olhos, porém o Senhor olha para o coração” (1Sm 16.7).

Jesus pega a figura do fariseu, estimado pelos judeus como um exemplo de pureza, obediência à lei, fidelidade à nação e moralidade, e a figura do publicano, odiado pelos judeus e visto como um mau exemplo, um impuro, um traidor e um ladrão (publicanos eram judeus que trabalhavam para os dominadores estrangeiros, os romanos, cobrando impostos de seus conterrâneos sobre propriedades em território judeu).

Enquanto que ser fariseu representava ter prestígio religioso e social (Fp 3.5), ser publicano representava péssima reputação (o próprio Jesus sugere isso quando diz que se deve considerar como “publicano” o irmão que não aceitar a repreensão da igreja. Conf. Mt 18.15-17). Publicanos foram citados ao lado das prostitutas, como estando no mesmo nível moral (Mt 21.31,32), e a palavra “publicano” virou sinônima de “pecador” (Conf. Lc 19.2.7).

Assim sendo, o especialista em Novo Testamento, Dr. Craig Keener, ressalta que para entender esta parábola de Jesus, “um cristão tradicional precisaria imaginar, no lugar dos personagens da história, o diácono ou professor da escola dominical mais ativo da igreja de um lado e, do outro, um traficante de drogas, ativista gay ou político corrupto” [1]. Se esta comparação nos parece ofensiva, especialmente nós que de fato somos professores da escola dominical, então começamos a sentir um pouco do impacto que esta parábola deve ter causado nos ouvidos daqueles que se julgavam melhores que “os demais homens” (v. 11).

Aos olhos de Deus, agrada mais um desprezível pecador que reconhece sua culpa e suplica por perdão do que um respeitado religioso que julga-se melhor que os demais homens e mui digno de louvores!

II. A HIPOCRISIA DO FARISEU
Marshall nos diz que “o fariseu era um homem piedoso, que vivia uma vida honesta e justa [moralmente falando]. Ele fazia até mais do que a lei [de Moisés] exigia. Jejuava duas vezes por semana (…), embora a lei exigisse ao povo jejuar apenas uma vez por ano. Ele dizimava sobre todos os seus rendimentos, e não apenas sobre as porções exigidas” [2]. Ao mero julgamento humano, era um perfeito religioso, um exemplo, um padrão de excelência! Todavia, Deus que “sonda os rins e o coração” (Ap 2.23) sabia o quanto o coração daquele fariseu estava cheio de rapina! (Lc 11.39)

1. O grupo dos fariseus.
Os fariseus eram o mais destacado grupo religioso nos tempos de Jesus. Superavam em número e em influência política e religiosa aos saduceus (classe geralmente composta de aristocratas, membros de famílias ricas de Israel) e aos essênios (grupo religioso que vivia nos desertos para evitar as “contaminações” dos grandes centros urbanos, e, portanto, menos envolvidos com a sociedade). Foram o grupo mais constante nas oposições a Cristo e aos seus apóstolos, sendo não raro confrontados duramente pelo Senhor, como nas muitas repreensões em Mateus 23.

Embora tenha surgido com a pretensão de serem um grupo separado das corrupções morais da sociedade (esse, aliás, é o significado da palavra fariseu – em hebraico, parash, isto é, separado), e também tivessem muitos ensinos que de fato refletiam a ortodoxia da lei e dos profetas (algo que Jesus mesmo reconheceu Mt 23.3), os fariseus acabaram na prática se desviando da direção correta quando passaram a valorizar mais preceitos e tradições humanas do que a própria Palavra de Deus, e reivindicando para si maior pureza que os demais homens.

O Novo Testamento apresenta os fariseus como tradicionalistas, moralistas, legalistas, cerimonialistas, avarentos (Lc 16.14) e, mais especialmente, hipócritas (confira na íntegra capítulo 23 de Mateus).

2. Tão hipócritas quanto arrogantes.
Entretanto, esta parábola de Lucas 18 não tenciona apontar a hipocrisia propriamente dos fariseus ou das pessoas que com aquele fariseu da parábola se identificam; antes, aqui destaca-se outra característica negativa do falso religioso: a arrogância. Isso porque a parábola não pretende negar que o fariseu fazia de fato o que ele diz que fazia, mas sim demonstrar que tal postura de autoadmiração na oração constituía uma arrogante confiança na própria justiça; e que o menosprezo aos outros pecadores na oração configurava um grande erro, já que o prazer de Deus está naquele “que se humilha” (v. 14) e não naquele que humilha o outro!

Se a parábola da viúva persistente no início do capítulo falava de um juiz que “não temia a Deus nem respeitava aos homens” (v. 2), esta parábola do fariseu e do publicano não está muito distante daquela, já que o fariseu é também um homem que não demonstra genuíno temor a Deus nem respeito ou sentimento de condescendência pelos outros.

3. Atitudes erradas na oração do fariseu.
Conforme o texto bíblico, dois erros estavam sendo cometidos pelo público a que esta parábola se destina:

3.1. Confiança na própria justiça. Esse foi o erro dos judeus que rejeitaram a Cristo, visto que confiavam em suas boas obras para serem justificados diante de Deus. Como disse o apóstolo Paulo, “Israel, que buscava a lei da justiça, não chegou à lei da justiça. Por quê? Porque não foi pela fé, mas como que pelas obras da lei; pois tropeçaram na pedra de tropeço” (Rm 9.31,32).

Os religiosos que rejeitaram a Cristo e a mensagem do Evangelho pensavam que a justificação diante de Deus se dava na base da “meritocracia moral e religiosa”, isto é, mediante o mérito que cada um poderia apresentar diante de Deus em razão da boa conduta e do volume de suas boas obras. Ledo engano! “Quem lhe deu primeiro a ele, para que lhe seja recompensado? Porque dele e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente” (Rm 11.35,36). Paulo, um fariseu convertido a Jesus Cristo, sabia que “pela graça de Deus sou o que sou” (1Co 15.10). E “se é por graça, já não é pelas obras” (Rm 11.6), “para que nenhuma carne se glorie diante dele” (1Co 1.29). Aos que confiam em si mesmos e se vangloriam de suas boas obras, que pese a palavra do Senhor através do profeta Jeremias: “Maldito o homem que confia no homem” (Jr 17.5).

3.2. Desprezo pelos outros. Essa é uma consequência óbvia da autoconfiança e da falsa concepção de justiça própria: o homem que a si mesmo se exalta tende a humilhar e desprezar os outros. Está sempre se comparando com os demais, “tendo de si mesmo um conceito mais elevado do que deve ter” (Rm 12.3). Ele nunca se compara com Deus para perceber o quanto está aquém d’Ele, antes vive se comparando com outros homens falhos para autogratificar-se quando se vê o quanto está além deles.

O arrogante é geralmente preconceituoso. Como o fariseu da parábola que olhava para o publicano como uma gentalha, o religioso arrogante costuma sempre ver sua santidade como superior a dos demais crentes, sua igreja como melhor que a dos demais irmãos, sua doutrina mais ortodoxa, seu conhecimento mais robusto e sua fé mais genuína. A Bíblia orienta “Louvem-te os lábios estranhos e não a tua própria boca” (Pv 27.2), mas o religioso arrogante não cessa de se bajular; a Bíblia exorta “Não sejam sábios aos seus próprios olhos” (Rm 12.16b), mas o religioso arrogante julga-se sempre acima da média e o mais qualificado para estar na dianteira.

Ora, se Deus que é mui grande a ninguém despreza (Jó 36.5), por que nós deveríamos desprezar o nosso semelhante, especialmente quando é um pecador buscando a Deus como nós?

3. Tornando Deus cúmplice no pecado.
Não deve surpreender-nos que no início da oração o fariseu tenha dito “Graças te dou, ó Deus…”, pois ao dar graças a Deus pela sua postura arrogante, o fariseu está inconscientemente cometendo mais um pecado: tornando Deus cúmplice de sua vida soberba, como se o sobejar de suas boas obras, que superavam as ordenanças da lei mosaica, e o sentimento de autossatisfação em seu coração fossem procedentes de Deus!

Entretanto, visto que Deus não pode ser responsabilizado jamais pela vaidade daquele moralista, Jesus nos diz que o fariseu “orava de si para si mesmo” (v. 11, ARA). Noutras palavras, sua oração era tão ególatra que, embora invocando a Deus, era dirigida a si mesmo, não a Deus o Pai. Sabe quando dizemos que uma oração não passou do teto? Pois bem, foi aquela oração do fariseu! Deus dá graça ao humilde, mas resiste ao soberbo (Tg 4.6).

4. Cuidado com a propaganda na oração!
O exegeta A.T. Robertson diz que a oração do fariseu foi, na verdade, “um recital complacente das suas próprias virtudes para sua própria satisfação, e não comunhão com Deus, embora ele se dirija a Deus” [3]. A oração é um meio pelo qual reverenciamos ao Senhor, o adoramos na beleza de sua santidade e o exaltamos com sinceridade de coração. Usar a oração para propagandear orgulhosamente a própria justiça diante de Deus é perverter os propósitos de tão sublime instrumento de comunicação com Deus e adoração!

O pregador batista Charles Spurgeon dizia que até em nossa santidade há pecado; eu direi que até mesmo em nossa oração há transgressão! Na verdade, mesmo genuínos homens ou mulheres de Deus podem cair no erro daquele fariseu, o erro de fazer da oração instrumento de propaganda diante de Deus. O Senhor conhece nossas obras, e sabe julgar entre boas ações feitas com boas intenções e boas ações feitas com más intenções!

Agora, não vamos confundir uma oração soberba, como a do fariseu desta parábola, com a petição humilde, sincera e quebrantada, como aquela feita no Antigo Testamento pelo rei Ezequias, que, quando avisado de morte, voltou-se para a parede e suplicou com lágrimas a Deus que lhe permitisse viver um pouco mais. Ezequias argumentou em poucas palavras: “Ah! Senhor, peço-te, lembra-te agora, de que andei diante de ti em verdade, e com coração perfeito, e fiz o que era reto aos teus olhos” (Is 38.3). Note que Ezequias também fala a Deus sobre suas boas obras e a retidão de sua conduta.

Mas, embora tenha falado a Deus em oração sobre seu procedimento, a atitude do piedoso rei de Judá distingue-se da postura altiva do fariseu sob os seguintes aspectos:

Oração de Ezequias - Oração do fariseu

O rei não se compara com ninguém. O fariseu se compara com os “demais homens”.
É uma oração de petição, reconhecendo que depende do favor do Senhor. É uma oração de autoadmiração, julgando-se merecedor da atenção divina.
É uma oração regada a lágrimas (Is 38.3b). É uma oração enfeitada com exaltação pessoal
O rei “orou ao Senhor” (Is 38.2). O fariseu “orava de si para si mesmo” (Lc 18.11)
A oração de Ezequias foi atendida. A oração do fariseu foi rejeitada.

Faço esta ponderação para dizer que não é de todo errado dirigir-se a Deus dizendo o que fez para o Senhor. Na verdade, se entendemos que Deus é nosso Pai e nosso Amigo, então não deveríamos ficar receosos de dizer-lhe o que temos feito para Ele. Todavia, que nossa atitude jamais seja de arrogância, que jamais usemos a oração para fazer comparações depreciativas ou nos gabar diante de Deus; antes, reconheçamos que tudo o que temos ou somos é pela graça de Deus, não porque sejamos melhores que outras pessoas ou merecedores das benesses divinas. Pois de fato não somos!

Que haja sempre em nós a contrição de Ezequias e nunca a soberba do fariseu.

III. A SINCERIDADE DO PUBLICANO
1. A distância entre o publicano e o fariseu.
O publicano orava no templo, a certa distância do fariseu (v. 13) [4]. De fato, a distância não é só espacial, mas também é uma distância nos propósitos e na postura espiritual: enquanto o fariseu orava ostentando seu currículo diante de Deus, o publicano orava suplicando por misericórdia; enquanto o fariseu julgava-se bom demais, o publicano reconhecia-se um indigno pecador.

Não seria uma interpretação forçada dizer que talvez o publicano propositalmente tenha se colocado distante do fariseu, reconhecendo sua indignidade de estar perto daquele religioso que era tido como um homem “separado”, “justo” e “bom” pelo público em volta, ainda que sob julgamento divino as coisas não fossem bem assim.

2. Uma oração dramática.
O publicano julgava-se tão miserável que se recusava erguer os olhos ao céu. Se o salmista lhe dissesse “eleve os olhos aos montes” (Sl 121.1), o publicano pediria licença para continuar com os olhos voltados para o chão, julgando-se não merecedor de erguer a cabeça ao Deus santíssimo.

A expressão “batendo no peito” fala-nos de um profundo pesar, típica reação do judeu que orava a Deus em momento de crise ou luto. Mas a atitude aqui reveste-se de um profundo significado: o publicano sentia a dor pelo pecado. Não é um autoflagelo, mas uma expressão dramática de alguém que está em agonia por não conseguir cumprir a vontade de Deus. Ele não está se ferindo, mas com toda franqueza confessando seu fracasso pessoal diante do Senhor. Somente alguém com profunda convicção de pecado e somente alguém que possui uma adequada percepção da santidade divina pode bater no peito enquanto ora a Deus.

Há os que batem no peito orgulhosamente, mas não é este o caso. O bater no peito aqui é de alguém que está insatisfeito consigo mesmo e busca ansiosamente mudar, melhorar, superar seus próprios fracassos para agradar a Deus. Na verdade, pode-se dizer que esta é a agonia de quem está dando à luz o arrependimento verdadeiro! Quando foi a última vez que batemos no peito com este mesmo sentimento? Quando foi a última vez que confessamos a Deus nossos pecados com tamanha franqueza como a deste publicano? Certamente hoje aquele publicano teria cantado estes versos:

“Mas um dia senti meu pecado, e vi
Sobre mim a espada da lei” [5]

A oração do publicano muito lembra-me a petição de Daniel em Babilônia: “Inclina os teus ouvidos, ó Deus (…) Não te fazemos pedidos por sermos justos, mas por causa da tua grande misericórdia” (Dn 9.18, NVI). Daniel, embora homem justo, via-se na mesma altura dos seus irmãos judeus que haviam pecado contra Deus e motivado a desolação que abateu o reino de Judá. Ele mesmo confessa: “O Senhor nosso Deus é misericordioso e perdoador, apesar de termos sido rebeldes” (Dn 9.9, NVI). Não é a oração demagógica de quem sabe ser bom demais, mas ora dissimulando humildade; antes, é a oração sincera de quem sabe que apesar do louvor dos homens, não passa de pó, de barro e que necessita da misericórdia de Deus a cada dia para triunfar sobre suas próprias fraquezas.

3. Uma oração breve, mas com muito conteúdo.
Percebe-se que o fariseu demorou-se mais em sua oração, enquanto apresentava a Deus seu currículo de boas obras; já o publicano foi mais objetivo, visto que nada tinha a apresentar a Deus a não ser seus pecados. Entretanto, há mais o que aprender com a breve oração do publicano! “Tem misericórdia de mim, que sou pecador” foi a petição daquele detestável judeu, onde vemos duas declarações importantes:

4. Preciso de misericórdia.
Essa misericórdia pela qual o publicano clamava não era no mesmo sentido em que Bartimeu, o cego, clamava. No caso de Bartimeu (Mc 10.47,48), a misericórdia era socorro, ajuda, compaixão (gr. eleeo) para reparação de um dano físico, enquanto que no caso do publicano, a misericórdia era propiciação, reconciliação, fazer as pazes (gr. hilaskomai) para reparação de um dano espiritual. Neste sentido, a tradução Almeida Revista e Atualizada é mais adequada: “…dizendo: Ó Deus, sê propício a mim, pecador!”.

Não tinha nenhum problema com a oração do cego Bartimeu, ele realmente precisava e suplicava por compaixão para que Jesus lhe abrisse os olhos. Entretanto, o que o publicano desta parábola estava pedindo era mais que socorro ou ajuda; era mais, muito mais que um bem material ou físico. Ele estava suplicando com angústia no peito por perdão e reconciliação divina! O problema dele não era no corpo, mas na alma! A sua deficiência não era física, mas moral e espiritual! É a angústia de alguém que sabe estar em inimizade com Deus, entende todos os perigos desta posição adversa, e não quer sofrer o dano de tal posição, antes busca reconciliar-se, fazer as pazes e tranquilizar a sua alma no perdão do Senhor (Sl 2.12; Pv 28.13).
Receio que temos orado muito a Deus por misericórdia no sentido de Bartimeu, mas estamos orando pouco demais por misericórdia no sentido do publicano. Gememos diante de Deus quando nos vemos necessitados de uma vitória física ou financeira, mas não nos angustiamos diante dos nossos fracassos espirituais quando somos diariamente surpreendidos pelas tentações! “Senti as vossas misérias, e lamentai e chorai”, diria Tiago para cada um de nós hoje, “converta-se o vosso riso em pranto, e o vosso gozo em tristeza. Humilhai-vos perante o Senhor, e ele vos exaltará” (Tg 4.9,10). Confrontados por esta palavra, supliquemos em agonia: Ó Deus, tem misericórdia de nós! Sê-nos propício!

5. Sou pecador.
Enquanto o fariseu via-se o melhor dentre os homens, o publicano percebia-se o pior. No texto grego está a palavra hamartolõ, de hamartolos, que significa “dedicado ao pecado”. É assim que Deus espera que todo homem se perceba diante dele, já que “todos pecaram” (Rm 3.23), e Jesus veio “buscar e salvar todo o que se havia perdido” (Lc 19.10).

Se o fariseu achava que tinha crédito no céu, o publicano sabia que estava em débito com Deus! Se o fariseu comparava-se com os outros homens da comunidade e assim julgava-se melhor, o publicano acertadamente estava a se “comparar com o padrão perfeito de Deus e perceber quão pecaminoso era”. [6]

De fato, o título de nossa Lição de hoje está bem apropriado: sinceridade e arrependimento diante de Deus. O indigno publicano estava arrependido e queria gozar de paz com Deus, ao passo em que muitos respeitados fariseus estavam com seus corações endurecidos para o arrependimento (Lc 7.30). Jesus os advertiu severamente noutro momento:

“Os publicanos e as prostitutas estão entrando antes de vocês no Reino de Deus. Porque João veio para lhes mostrar o caminho da justiça, e vocês não creram nele, mas os publicanos e as prostitutas creram. E, mesmo depois de verem isso, vocês não se arrependeram nem creram nele” (Mt 21.31,32).

Visto que as parábolas de Jesus tencionam falar do reino de Deus, vê-se que esta parábola aponta para a admissão de súditos neste reino: admissão que se dá por meio da fé genuína e do arrependimento sincero. Quem se arrepende, entra; quem se justifica a si mesmo, fica de fora!

6. A oração que foi atendida.
Jesus afirma que o publicano, e não o fariseu, “desceu justificado para a sua casa” (v. 14). Dois homens no templo, dois homens orando, dois homens judeus; mas só um, apenas um voltou para casa com a aprovação divina, e foi aquele que nada apresentou a Deus senão sua culpa e seu anseio pela reconciliação divina. O que se exaltou no templo, foi humilhado diante dos anjos de Deus; o que se humilhou no templo, foi declarado justo diante dos anjos de Deus! Não importa tanto nossa reputação aos olhos dos homens, mas aos olhos de Deus!

Já foi dito por alguém que “Deus não presta atenção à pompa das palavras ou à variedade de expressões, mas à sinceridade e à devoção do coração. A chave abre a porta não porque é dourada, mas porque se encaixa na fechadura”. Eis aí o segredo da vitória na oração! Que nossas petições sejam do mesmo tamanho da vontade de Deus, e então dará tudo certo.

CONCLUSÃO. Sabe o que é interessante? Jesus chamou tanto um publicano quanto um fariseu para serem apóstolos e importantes lideranças da Igreja, bem como autores de livros sagrados. De quem estamos falando? Do publicano Mateus (ou Levi, conf. Mt 9.9; Lc 5.27) e do fariseu Saulo de Tarso! (At 23.6; 26.5; Fp 3.5). Mateus é o autor do evangelho que leva o seu nome, e que foi inicialmente direcionado aos crentes judeus; Saulo, também chamado Paulo, foi o apóstolo dos gentios e autor de 13 livros do Novo Testamento.

Como bem pondera I. Howard Marshall, “sem dúvidas houve muitos fariseus bons e bem-intencionados, e por isso não seria correto condenar a todos por igual” [7]. O problema de Jesus não era com o fato dos homens serem religiosamente fariseus ou profissionalmente publicanos, mas com os religiosos arrogantes que fechavam seus corações para a verdadeira fé ao momento em que julgavam-se melhores que os demais homens e dignos de louvores. Deus não se importa com rótulos, nem com aparência; o que Ele não tolera é a nossa altivez de espírito, visto que se agrada da contrição e do quebrantamento. Diante de Deus somos todos publicanos, necessitados de Sua compaixão, de Sua misericórdia! Se alguém julga-se muito importante acima de seus semelhantes, lembre-se que em apenas duas letras o homem pode ser definido: pó! (Sl 103.14).

REFERÊNCIAS

[1] Craig Keener. Comentário histórico-cultural da Bíblia – Novo Testamento, Vida Nova, p. 267
[2] I. Howard Marshall. in Comentário Bíblico Vida Nova, Vida Nova, p. 1518
[3] A.T. Robertson. Comentário Lucas à luz do Novo Testamento Grego, CPAD, p. 311
[4] alguns expoentes interpretam que o publicano orava distante do templo, do lado de fora, longe da vista do fariseu. Entretanto, discordo desta interpretação pelas razões que se encontram no próprio texto: ambos subiram “ao templo” (v. 10), e certamente o publicano, embora afastado do fariseu, mantinha-se sob a vista deste a tal ponto que o fariseu podia dizer “este publicano” (v. 11). Se o publicano estivesse do lado de fora do templo, noutro pátio ou longe da visão do fariseu, não faria sentido o uso do pronome demonstrativo “este publicano”.
[5] hino Conversão, n° 15 na Harpa Cristã, CPAD. Certamente um grande clássico e um dos hinos evangélicos mais populares.
[6] William MacDonald. Comentário Bíblico Popular – Novo Testamento, Mundo Cristão, pp. 212,3
[7] I. Howard Marshall. Op. cit.
Seite da Assembleia de Deus de Campinas SP. https://artigos.gospelprime.com.br/sinceridade-e-arrependimento-diante-de-deus/ Acesso dia 07/11/2018.

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