Lucas
18.9-14
“E disse também esta parábola a uns que confiavam em si mesmos, crendo que eram
justos, e desprezavam os outros: 10 Dois homens subiram ao templo, a orar; um,
fariseu, e o outro, publica no. 11 O fariseu, estando em pé, orava consigo
desta maneira: Ó Deus, graças te dou, porque não sou como os demais homens,
roubadores, injustos e adúlteros; nem ainda como este publicano. 12 Jejuo duas
vezes na semana e dou os dízimos de tudo quanto possuo. 13 O publicano, porém,
estando em pé, de longe, nem ainda queria levantar os olhos ao céu, mas batia
no peito, dizendo: Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador! 14 Digo-vos que
este desceu justificado para sua casa, e não aquele; porque qualquer que a si
mesmo se exalta será humilhado, e qualquer que a si mesmo se humilha será
exaltado.”
INTRODUÇÃO. Talvez a
parábola do fariseu e do publicano seja uma das mais conhecidas. Ela mostra que
a dependência humilde diante de Deus, em vez de justiça própria, é a base para
a resposta de oração. Muitas pessoas acreditam que Deus deve responder suas
orações com base naquilo que elas fazem para Ele. Contudo, na contramão da
meritocracia religiosa, e dentro da gloriosa graça de Deus, que faz cair chuva
sobre justos e injustos (Mt 5.45), a lição de hoje nos ensina que o que Deus
quer é que nossas orações sejam permeadas de sinceridade e arrependimento.
Quando oramos a Deus, devemos confiar em quem Ele é, e não em quem nós somos.
Jesus ensina que são felizes os humildes de espírito (Mt 5.3), aqueles que
reconhecem a sua real condição diante de Deus. Por isso, hoje vamos falar sobre
a sinceridade e o arrependimento para com o Senhor.
Se a primeira parábola tratava da
perseverança na fé (vv. 1, 8), esta parábola agora fala da verdadeira postura
que se espera de um homem de fé: reconhecimento de que tudo o que temos ou
somos é por misericórdia divina, não por nossos próprios méritos! Assim, embora
utilize-se de uma parábola que fala de oração, Jesus pretende fazer-nos
refletir sobre nossa postura diante dos homens e para com Deus em todos os
aspectos de nossa vida!
I.
INTERPRETAÇÃO DA PARÁBOLA DO FARISEU E DO PUBLICANO
1.
O propósito da parábola.
O evangelista Lucas nos diz o motivo de
Jesus ter contado esta parábola:
“A alguns que confiavam em sua própria
justiça e desprezavam os outros, Jesus contou esta parábola” (v. 9, NVI)
Lembremo-nos que Jesus costumava andar
cercado de multidões, e nem todos ali eram verdadeiramente convertidos. Além
disso, era comum que perto de Jesus estivessem sempre falsos religiosos, como
alguns fariseus, escribas e intérpretes da lei (embora entre eles também
existissem crentes verdadeiros). Ao público específico de religiosos arrogantes
é que Jesus dirige esta parábola, com a clara intenção de confrontá-los e, ao
mesmo tempo, ensinar-lhes sobre a verdadeira postura religiosa que agrada a
Deus.
2.
O contraste entre “o melhor” e “o pior”.
O contraste estabelecido por Jesus entre
os dois personagens é bem proposital. A intenção é contrastar o pior com o
melhor dos homens, a fim de revelar que aos olhos de Deus o pior pode ser o
melhor, enquanto que o melhor pode ser o pior! “O Senhor não vê como vê o
homem, pois o homem vê o que está diante dos olhos, porém o Senhor olha para o
coração” (1Sm 16.7).
Jesus pega a figura do fariseu, estimado
pelos judeus como um exemplo de pureza, obediência à lei, fidelidade à nação e
moralidade, e a figura do publicano, odiado pelos judeus e visto como um mau
exemplo, um impuro, um traidor e um ladrão (publicanos eram judeus que
trabalhavam para os dominadores estrangeiros, os romanos, cobrando impostos de
seus conterrâneos sobre propriedades em território judeu).
Enquanto que ser fariseu representava
ter prestígio religioso e social (Fp 3.5), ser publicano representava péssima
reputação (o próprio Jesus sugere isso quando diz que se deve considerar como
“publicano” o irmão que não aceitar a repreensão da igreja. Conf. Mt 18.15-17).
Publicanos foram citados ao lado das prostitutas, como estando no mesmo nível
moral (Mt 21.31,32), e a palavra “publicano” virou sinônima de “pecador” (Conf.
Lc 19.2.7).
Assim sendo, o especialista em Novo
Testamento, Dr. Craig Keener, ressalta que para entender esta parábola de
Jesus, “um cristão tradicional precisaria imaginar, no lugar dos personagens da
história, o diácono ou professor da escola dominical mais ativo da igreja de um
lado e, do outro, um traficante de drogas, ativista gay ou político corrupto”
[1]. Se esta comparação nos parece ofensiva, especialmente nós que de fato
somos professores da escola dominical, então começamos a sentir um pouco do
impacto que esta parábola deve ter causado nos ouvidos daqueles que se julgavam
melhores que “os demais homens” (v. 11).
Aos olhos de Deus, agrada mais um
desprezível pecador que reconhece sua culpa e suplica por perdão do que um
respeitado religioso que julga-se melhor que os demais homens e mui digno de
louvores!
II.
A HIPOCRISIA DO FARISEU
Marshall nos diz que “o fariseu era um
homem piedoso, que vivia uma vida honesta e justa [moralmente falando]. Ele
fazia até mais do que a lei [de Moisés] exigia. Jejuava duas vezes por semana
(…), embora a lei exigisse ao povo jejuar apenas uma vez por ano. Ele dizimava
sobre todos os seus rendimentos, e não apenas sobre as porções exigidas” [2].
Ao mero julgamento humano, era um perfeito religioso, um exemplo, um padrão de
excelência! Todavia, Deus que “sonda os rins e o coração” (Ap 2.23) sabia o
quanto o coração daquele fariseu estava cheio de rapina! (Lc 11.39)
1.
O grupo dos fariseus.
Os fariseus eram o mais destacado grupo
religioso nos tempos de Jesus. Superavam em número e em influência política e
religiosa aos saduceus (classe geralmente composta de aristocratas, membros de
famílias ricas de Israel) e aos essênios (grupo religioso que vivia nos
desertos para evitar as “contaminações” dos grandes centros urbanos, e,
portanto, menos envolvidos com a sociedade). Foram o grupo mais constante nas
oposições a Cristo e aos seus apóstolos, sendo não raro confrontados duramente
pelo Senhor, como nas muitas repreensões em Mateus 23.
Embora tenha surgido com a pretensão de
serem um grupo separado das corrupções morais da sociedade (esse, aliás, é o
significado da palavra fariseu – em hebraico, parash, isto é, separado), e também tivessem muitos ensinos que de
fato refletiam a ortodoxia da lei e dos profetas (algo que Jesus mesmo
reconheceu Mt 23.3), os fariseus acabaram na prática se desviando da direção
correta quando passaram a valorizar mais preceitos e tradições humanas do que a
própria Palavra de Deus, e reivindicando para si maior pureza que os demais
homens.
O Novo Testamento apresenta os fariseus
como tradicionalistas, moralistas, legalistas, cerimonialistas, avarentos (Lc
16.14) e, mais especialmente, hipócritas (confira na íntegra capítulo 23 de
Mateus).
2.
Tão hipócritas quanto arrogantes.
Entretanto, esta parábola de Lucas 18
não tenciona apontar a hipocrisia propriamente dos fariseus ou das pessoas que
com aquele fariseu da parábola se identificam; antes, aqui destaca-se outra
característica negativa do falso religioso: a arrogância. Isso porque a
parábola não pretende negar que o fariseu fazia de fato o que ele diz que
fazia, mas sim demonstrar que tal postura de autoadmiração na oração constituía
uma arrogante confiança na própria justiça; e que o menosprezo aos outros
pecadores na oração configurava um grande erro, já que o prazer de Deus está
naquele “que se humilha” (v. 14) e não naquele que humilha o outro!
Se a parábola da viúva persistente no
início do capítulo falava de um juiz que “não temia a Deus nem respeitava aos
homens” (v. 2), esta parábola do fariseu e do publicano não está muito distante
daquela, já que o fariseu é também um homem que não demonstra genuíno temor a
Deus nem respeito ou sentimento de condescendência pelos outros.
3.
Atitudes erradas na oração do fariseu.
Conforme o texto bíblico, dois erros
estavam sendo cometidos pelo público a que esta parábola se destina:
3.1.
Confiança na própria justiça. Esse foi o erro dos judeus que
rejeitaram a Cristo, visto que confiavam em suas boas obras para serem
justificados diante de Deus. Como disse o apóstolo Paulo, “Israel, que buscava
a lei da justiça, não chegou à lei da justiça. Por quê? Porque não foi pela fé,
mas como que pelas obras da lei; pois tropeçaram na pedra de tropeço” (Rm
9.31,32).
Os religiosos que rejeitaram a Cristo e
a mensagem do Evangelho pensavam que a justificação diante de Deus se dava na
base da “meritocracia moral e religiosa”, isto é, mediante o mérito que cada um
poderia apresentar diante de Deus em razão da boa conduta e do volume de suas
boas obras. Ledo engano! “Quem lhe deu primeiro a ele, para que lhe seja
recompensado? Porque dele e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória,
pois, a ele eternamente” (Rm 11.35,36). Paulo, um fariseu convertido a Jesus
Cristo, sabia que “pela graça de Deus sou o que sou” (1Co 15.10). E “se é por
graça, já não é pelas obras” (Rm 11.6), “para que nenhuma carne se glorie
diante dele” (1Co 1.29). Aos que confiam em si mesmos e se vangloriam de suas
boas obras, que pese a palavra do Senhor através do profeta Jeremias: “Maldito
o homem que confia no homem” (Jr 17.5).
3.2.
Desprezo pelos outros. Essa é uma consequência óbvia da autoconfiança e da
falsa concepção de justiça própria: o homem que a si mesmo se exalta tende a
humilhar e desprezar os outros. Está sempre se comparando com os demais, “tendo
de si mesmo um conceito mais elevado do que deve ter” (Rm 12.3). Ele nunca se
compara com Deus para perceber o quanto está aquém d’Ele, antes vive se
comparando com outros homens falhos para autogratificar-se quando se vê o
quanto está além deles.
O arrogante é geralmente preconceituoso.
Como o fariseu da parábola que olhava para o publicano como uma gentalha, o
religioso arrogante costuma sempre ver sua santidade como superior a dos demais
crentes, sua igreja como melhor que a dos demais irmãos, sua doutrina mais
ortodoxa, seu conhecimento mais robusto e sua fé mais genuína. A Bíblia orienta
“Louvem-te os lábios estranhos e não a tua própria boca” (Pv 27.2), mas o
religioso arrogante não cessa de se bajular; a Bíblia exorta “Não sejam sábios
aos seus próprios olhos” (Rm 12.16b), mas o religioso arrogante julga-se sempre
acima da média e o mais qualificado para estar na dianteira.
Ora, se Deus que é mui grande a ninguém
despreza (Jó 36.5), por que nós deveríamos desprezar o nosso semelhante,
especialmente quando é um pecador buscando a Deus como nós?
3.
Tornando Deus cúmplice no pecado.
Não deve surpreender-nos que no início
da oração o fariseu tenha dito “Graças te dou, ó Deus…”, pois ao dar graças a
Deus pela sua postura arrogante, o fariseu está inconscientemente cometendo
mais um pecado: tornando Deus cúmplice de sua vida soberba, como se o sobejar
de suas boas obras, que superavam as ordenanças da lei mosaica, e o sentimento
de autossatisfação em seu coração fossem procedentes de Deus!
Entretanto, visto que Deus não pode ser
responsabilizado jamais pela vaidade daquele moralista, Jesus nos diz que o
fariseu “orava de si para si mesmo” (v. 11, ARA). Noutras palavras, sua oração
era tão ególatra que, embora invocando a Deus, era dirigida a si mesmo, não a
Deus o Pai. Sabe quando dizemos que uma oração não passou do teto? Pois bem,
foi aquela oração do fariseu! Deus dá graça ao humilde, mas resiste ao soberbo
(Tg 4.6).
4.
Cuidado com a propaganda na oração!
O exegeta A.T. Robertson diz que a
oração do fariseu foi, na verdade, “um recital complacente das suas próprias
virtudes para sua própria satisfação, e não comunhão com Deus, embora ele se
dirija a Deus” [3]. A oração é um meio pelo qual reverenciamos ao Senhor, o
adoramos na beleza de sua santidade e o exaltamos com sinceridade de coração.
Usar a oração para propagandear orgulhosamente a própria justiça diante de Deus
é perverter os propósitos de tão sublime instrumento de comunicação com Deus e
adoração!
O pregador batista Charles Spurgeon
dizia que até em nossa santidade há pecado; eu direi que até mesmo em nossa
oração há transgressão! Na verdade, mesmo genuínos homens ou mulheres de Deus
podem cair no erro daquele fariseu, o erro de fazer da oração instrumento de
propaganda diante de Deus. O Senhor conhece nossas obras, e sabe julgar entre
boas ações feitas com boas intenções e boas ações feitas com más intenções!
Agora, não vamos confundir uma oração
soberba, como a do fariseu desta parábola, com a petição humilde, sincera e
quebrantada, como aquela feita no Antigo Testamento pelo rei Ezequias, que,
quando avisado de morte, voltou-se para a parede e suplicou com lágrimas a Deus
que lhe permitisse viver um pouco mais. Ezequias argumentou em poucas palavras:
“Ah! Senhor, peço-te, lembra-te agora, de que andei diante de ti em verdade, e
com coração perfeito, e fiz o que era reto aos teus olhos” (Is 38.3). Note que
Ezequias também fala a Deus sobre suas boas obras e a retidão de sua conduta.
Mas, embora tenha falado a Deus em
oração sobre seu procedimento, a atitude do piedoso rei de Judá distingue-se da
postura altiva do fariseu sob os seguintes aspectos:
Oração
de Ezequias - Oração do fariseu
O
rei não se compara com ninguém. O fariseu se compara com os “demais
homens”.
É uma oração de petição, reconhecendo
que depende do favor do Senhor. É uma oração de autoadmiração, julgando-se
merecedor da atenção divina.
É uma oração regada a lágrimas (Is
38.3b). É uma oração enfeitada com exaltação pessoal
O rei “orou ao Senhor” (Is 38.2). O
fariseu “orava de si para si mesmo” (Lc 18.11)
A oração de Ezequias foi atendida. A
oração do fariseu foi rejeitada.
Faço esta ponderação para dizer que não
é de todo errado dirigir-se a Deus dizendo o que fez para o Senhor. Na verdade,
se entendemos que Deus é nosso Pai e nosso Amigo, então não deveríamos ficar
receosos de dizer-lhe o que temos feito para Ele. Todavia, que nossa atitude
jamais seja de arrogância, que jamais usemos a oração para fazer comparações
depreciativas ou nos gabar diante de Deus; antes, reconheçamos que tudo o que
temos ou somos é pela graça de Deus, não porque sejamos melhores que outras
pessoas ou merecedores das benesses divinas. Pois de fato não somos!
Que haja sempre em nós a contrição de
Ezequias e nunca a soberba do fariseu.
III.
A SINCERIDADE DO PUBLICANO
1.
A distância entre o publicano e o fariseu.
O publicano orava no templo, a certa
distância do fariseu (v. 13) [4]. De fato, a distância não é só espacial, mas
também é uma distância nos propósitos e na postura espiritual: enquanto o
fariseu orava ostentando seu currículo diante de Deus, o publicano orava
suplicando por misericórdia; enquanto o fariseu julgava-se bom demais, o
publicano reconhecia-se um indigno pecador.
Não seria uma interpretação forçada
dizer que talvez o publicano propositalmente tenha se colocado distante do
fariseu, reconhecendo sua indignidade de estar perto daquele religioso que era
tido como um homem “separado”, “justo” e “bom” pelo público em volta, ainda que
sob julgamento divino as coisas não fossem bem assim.
2.
Uma oração dramática.
O publicano julgava-se tão miserável que
se recusava erguer os olhos ao céu. Se o salmista lhe dissesse “eleve os olhos
aos montes” (Sl 121.1), o publicano pediria licença para continuar com os olhos
voltados para o chão, julgando-se não merecedor de erguer a cabeça ao Deus
santíssimo.
A expressão “batendo no peito” fala-nos
de um profundo pesar, típica reação do judeu que orava a Deus em momento de
crise ou luto. Mas a atitude aqui reveste-se de um profundo significado: o
publicano sentia a dor pelo pecado. Não é um autoflagelo, mas uma expressão
dramática de alguém que está em agonia por não conseguir cumprir a vontade de
Deus. Ele não está se ferindo, mas com toda franqueza confessando seu fracasso
pessoal diante do Senhor. Somente alguém com profunda convicção de pecado e
somente alguém que possui uma adequada percepção da santidade divina pode bater
no peito enquanto ora a Deus.
Há os que batem no peito orgulhosamente,
mas não é este o caso. O bater no peito aqui é de alguém que está insatisfeito
consigo mesmo e busca ansiosamente mudar, melhorar, superar seus próprios
fracassos para agradar a Deus. Na verdade, pode-se dizer que esta é a agonia de
quem está dando à luz o arrependimento verdadeiro! Quando foi a última vez que
batemos no peito com este mesmo sentimento? Quando foi a última vez que
confessamos a Deus nossos pecados com tamanha franqueza como a deste publicano?
Certamente hoje aquele publicano teria cantado estes versos:
“Mas um dia senti meu pecado, e vi
Sobre mim a espada da lei” [5]
A oração do publicano muito lembra-me a
petição de Daniel em Babilônia: “Inclina os teus ouvidos, ó Deus (…) Não te
fazemos pedidos por sermos justos, mas por causa da tua grande misericórdia”
(Dn 9.18, NVI). Daniel, embora homem justo, via-se na mesma altura dos seus
irmãos judeus que haviam pecado contra Deus e motivado a desolação que abateu o
reino de Judá. Ele mesmo confessa: “O Senhor nosso Deus é misericordioso e
perdoador, apesar de termos sido rebeldes” (Dn 9.9, NVI). Não é a oração
demagógica de quem sabe ser bom demais, mas ora dissimulando humildade; antes,
é a oração sincera de quem sabe que apesar do louvor dos homens, não passa de
pó, de barro e que necessita da misericórdia de Deus a cada dia para triunfar
sobre suas próprias fraquezas.
3.
Uma oração breve, mas com muito conteúdo.
Percebe-se que o fariseu demorou-se mais
em sua oração, enquanto apresentava a Deus seu currículo de boas obras; já o
publicano foi mais objetivo, visto que nada tinha a apresentar a Deus a não ser
seus pecados. Entretanto, há mais o que aprender com a breve oração do
publicano! “Tem misericórdia de mim, que sou pecador” foi a petição daquele
detestável judeu, onde vemos duas declarações importantes:
4.
Preciso de misericórdia.
Essa misericórdia pela qual o publicano
clamava não era no mesmo sentido em que Bartimeu, o cego, clamava. No caso de
Bartimeu (Mc 10.47,48), a misericórdia era socorro, ajuda, compaixão (gr.
eleeo) para reparação de um dano físico, enquanto que no caso do publicano, a
misericórdia era propiciação, reconciliação, fazer as pazes (gr. hilaskomai)
para reparação de um dano espiritual. Neste sentido, a tradução Almeida Revista
e Atualizada é mais adequada: “…dizendo: Ó Deus, sê propício a mim, pecador!”.
Não tinha nenhum problema com a oração
do cego Bartimeu, ele realmente precisava e suplicava por compaixão para que Jesus
lhe abrisse os olhos. Entretanto, o que o publicano desta parábola estava
pedindo era mais que socorro ou ajuda; era mais, muito mais que um bem material
ou físico. Ele estava suplicando com angústia no peito por perdão e
reconciliação divina! O problema dele não era no corpo, mas na alma! A sua
deficiência não era física, mas moral e espiritual! É a angústia de alguém que
sabe estar em inimizade com Deus, entende todos os perigos desta posição
adversa, e não quer sofrer o dano de tal posição, antes busca reconciliar-se,
fazer as pazes e tranquilizar a sua alma no perdão do Senhor (Sl 2.12; Pv
28.13).
Receio que temos orado muito a Deus por
misericórdia no sentido de Bartimeu, mas estamos orando pouco demais por
misericórdia no sentido do publicano. Gememos diante de Deus quando nos vemos
necessitados de uma vitória física ou financeira, mas não nos angustiamos
diante dos nossos fracassos espirituais quando somos diariamente surpreendidos
pelas tentações! “Senti as vossas misérias, e lamentai e chorai”, diria Tiago
para cada um de nós hoje, “converta-se o vosso riso em pranto, e o vosso gozo
em tristeza. Humilhai-vos perante o Senhor, e ele vos exaltará” (Tg 4.9,10).
Confrontados por esta palavra, supliquemos em agonia: Ó Deus, tem misericórdia
de nós! Sê-nos propício!
5.
Sou pecador.
Enquanto o fariseu via-se o melhor
dentre os homens, o publicano percebia-se o pior. No texto grego está a palavra
hamartolõ, de hamartolos, que significa “dedicado ao pecado”. É assim que Deus
espera que todo homem se perceba diante dele, já que “todos pecaram” (Rm 3.23),
e Jesus veio “buscar e salvar todo o que se havia perdido” (Lc 19.10).
Se o fariseu achava que tinha crédito no
céu, o publicano sabia que estava em débito com Deus! Se o fariseu comparava-se
com os outros homens da comunidade e assim julgava-se melhor, o publicano
acertadamente estava a se “comparar com o padrão perfeito de Deus e perceber
quão pecaminoso era”. [6]
De fato, o título de nossa Lição de hoje
está bem apropriado: sinceridade e arrependimento diante de Deus. O indigno
publicano estava arrependido e queria gozar de paz com Deus, ao passo em que
muitos respeitados fariseus estavam com seus corações endurecidos para o
arrependimento (Lc 7.30). Jesus os advertiu severamente noutro momento:
“Os publicanos e as prostitutas estão
entrando antes de vocês no Reino de Deus. Porque João veio para lhes mostrar o
caminho da justiça, e vocês não creram nele, mas os publicanos e as prostitutas
creram. E, mesmo depois de verem isso, vocês não se arrependeram nem creram
nele” (Mt 21.31,32).
Visto que as parábolas de Jesus
tencionam falar do reino de Deus, vê-se que esta parábola aponta para a
admissão de súditos neste reino: admissão que se dá por meio da fé genuína e do
arrependimento sincero. Quem se arrepende, entra; quem se justifica a si mesmo,
fica de fora!
6.
A oração que foi atendida.
Jesus afirma que o publicano, e não o
fariseu, “desceu justificado para a sua casa” (v. 14). Dois homens no templo,
dois homens orando, dois homens judeus; mas só um, apenas um voltou para casa
com a aprovação divina, e foi aquele que nada apresentou a Deus senão sua culpa
e seu anseio pela reconciliação divina. O que se exaltou no templo, foi
humilhado diante dos anjos de Deus; o que se humilhou no templo, foi declarado
justo diante dos anjos de Deus! Não importa tanto nossa reputação aos olhos dos
homens, mas aos olhos de Deus!
Já foi dito por alguém que “Deus não
presta atenção à pompa das palavras ou à variedade de expressões, mas à
sinceridade e à devoção do coração. A chave abre a porta não porque é dourada,
mas porque se encaixa na fechadura”. Eis aí o segredo da vitória na oração! Que
nossas petições sejam do mesmo tamanho da vontade de Deus, e então dará tudo
certo.
CONCLUSÃO.
Sabe
o que é interessante? Jesus chamou tanto um publicano quanto um fariseu para
serem apóstolos e importantes lideranças da Igreja, bem como autores de livros
sagrados. De quem estamos falando? Do publicano Mateus (ou Levi, conf. Mt 9.9;
Lc 5.27) e do fariseu Saulo de Tarso! (At 23.6; 26.5; Fp 3.5). Mateus é o autor
do evangelho que leva o seu nome, e que foi inicialmente direcionado aos
crentes judeus; Saulo, também chamado Paulo, foi o apóstolo dos gentios e autor
de 13 livros do Novo Testamento.
Como bem pondera I. Howard Marshall,
“sem dúvidas houve muitos fariseus bons e bem-intencionados, e por isso não
seria correto condenar a todos por igual” [7]. O problema de Jesus não era com
o fato dos homens serem religiosamente fariseus ou profissionalmente
publicanos, mas com os religiosos arrogantes que fechavam seus corações para a
verdadeira fé ao momento em que julgavam-se melhores que os demais homens e
dignos de louvores. Deus não se importa com rótulos, nem com aparência; o que
Ele não tolera é a nossa altivez de espírito, visto que se agrada da contrição
e do quebrantamento. Diante de Deus somos todos publicanos, necessitados de Sua
compaixão, de Sua misericórdia! Se alguém julga-se muito importante acima de
seus semelhantes, lembre-se que em apenas duas letras o homem pode ser
definido: pó! (Sl 103.14).
REFERÊNCIAS
[1] Craig Keener. Comentário
histórico-cultural da Bíblia – Novo Testamento, Vida Nova, p. 267
[2] I. Howard Marshall. in Comentário
Bíblico Vida Nova, Vida Nova, p. 1518
[3] A.T. Robertson. Comentário Lucas à
luz do Novo Testamento Grego, CPAD, p. 311
[4] alguns expoentes interpretam que o
publicano orava distante do templo, do lado de fora, longe da vista do fariseu.
Entretanto, discordo desta interpretação pelas razões que se encontram no
próprio texto: ambos subiram “ao templo” (v. 10), e certamente o publicano,
embora afastado do fariseu, mantinha-se sob a vista deste a tal ponto que o
fariseu podia dizer “este publicano” (v. 11). Se o publicano estivesse do lado
de fora do templo, noutro pátio ou longe da visão do fariseu, não faria sentido
o uso do pronome demonstrativo “este publicano”.
[5] hino Conversão, n° 15 na Harpa
Cristã, CPAD. Certamente um grande clássico e um dos hinos evangélicos mais
populares.
[6] William MacDonald. Comentário
Bíblico Popular – Novo Testamento, Mundo Cristão, pp. 212,3
[7] I. Howard Marshall. Op. cit.
Seite da Assembleia de Deus de Campinas
SP. https://artigos.gospelprime.com.br/sinceridade-e-arrependimento-diante-de-deus/
Acesso dia 07/11/2018.